quinta-feira, 3 de junho de 2021

MANCADAS DA VIDA - ESTA REALMENTE OCORREU COMIGO

 

O GUARDA-CHUVA INCOMUM

João Bosco Miquelão

Tempo de estudante. As radionovelas coexistiam com uma televisão incipiente e as alfaiatarias ainda não haviam desaparecido, pois o traje dos bailes aos domingos ainda era paletó e gravata. Os sapatos tinham que estar bem engraxados, e somente usávamos tênis para praticar esportes.

A capa, o chapéu de xantungue e o guarda-chuva eram peças inseparáveis do homem da cidade na época das chuvas. Usado sem constrangimento pelos jovens, o guarda-chuva não era um objeto "careta". Havia verdadeiras obras de arte com incrustações em prata, cabos de madrepérola, detalhes em marfim ou finos desenhos esculpidos em madeira de lei, que permitiam aos mais idosos, saudosistas, a revivescência, ainda que simbólica, das elegantes bengalas - moda desaparecida há muitas décadas.

Aos domingos à tarde, tínhamos o hábito de contar anedotas, apostar no jogo de palitos ou apreciar as moças que faziam o footing à porta do café. Eventuais brincadeiras com alguém do grupo também faziam parte do nosso passatempo. Certa vez uma brincadeira dessas teve resultado inesperado.

Meu amigo possuía um guarda-chuva incomum, especial, cujo cabo, lindamente trabalhado, segundo não cansava de afirmar, era obra de um artesão chinês. Estávamos habituados a ouvir "não existe outro igual", motivo que nos levou a nutrir um desejo secreto: esconder o inseparável objeto que dava ao seu proprietário tanta satisfação e lhe conferia um ar de morador londrino.

Aquele domingo de julho estava frio e chuvoso. Todos usávamos guarda-chuvas. Ao sairmos do café percebi o cimélio pendurado ao balcão. Era a oportunidade que esperava! Meu amigo, que saíra à frente e nos aguardava à porta do café, esquecera o guarda-chuva! Não perdi tempo. Escondi-o sob a capa, antegozando, sadicamente, a aflição que a brincadeira causaria ao companheiro. Dei alguns passos em direção à porta. Alguém tocou meu ombro. Virei-me. Um senhor de meia-idade, desconhecido, em tom calmo, proferiu uma frase que soou como pedradas: "Este guarda-chuva é meu!”.

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