domingo, 4 de novembro de 2018

CRÔNICAS APÓS O LANÇAMENTO DO LIVRO "PLÍNIA TRUNCIFLORA E OUTRAS CRÔNICAS"


Desencontro por um triz

 

Ele havia sido transferido para a Capital recentemente. Conhecia poucas pessoas nesta cidade e fizera amizade comigo através de um parente.

Além de contar casos dos tempos de juventude, tínhamos em comum outro gosto: automóveis grandes. Ele admirava meu Dodge Charger RT, carrão bem conservado, com motor de oito cilindros, que pouco saía da garagem. Falou em comprá-lo, mas nunca chegou a fazer uma proposta para esse fim.

Costumava visitar-me aos sábados quando trazia a esposa e os dois filhos. Nessas ocasiões tomávamos cerveja e a conversava se estendia até tarde. Às vezes a família vinha almoçar num domingo, e nunca faltavam às festinhas de aniversário.

Ocasionalmente nos reuníamos na casa do tal parente que nos apresentou.

Nessas conversas abordávamos o estudo dos filhos, a situação econômica do país, questões históricas - temas de que ambos gostávamos - e outros assuntos diversos, mas nada sobre nossas atividades profissionais. 

Ele era juiz de direito, eu trabalhava no departamento financeiro de uma grande empresa – assim era óbvio que o trabalho de um nada tinha a ver com o do outro.

Uma vez combinamos um almoço na minha casa. Lembro-me que o prato principal seria bisteca ao forno, uma delícia que minha mulher preparava com um capricho especial.

Naquele domingo levantei-me mais cedo, abasteci a geladeira de cervejas e refrigerantes. Também providenciei frutas e demais complementos para o almoço.

Eram cerca de dez horas quando o telefone tocou. Era o meu amigo que se desculpava por não poder comparecer ao almoço. Havia surgido um imprevisto, e ele, por conta própria, já se convidava para outro almoço no domingo seguinte.

Minha mulher ficou um pouco aborrecida, pois desde o dia anterior ela se ocupara com os preparativos do tal almoço... 

O relógio ainda não marcava onze horas quando o telefone tocou novamente. Era um colega da empresa em que eu trabalhava. Ele indagava se podia almoçar na minha casa e ainda perguntou se podia levar um amigo.

Esse colega era solteirão. Eu tinha pena dele. Sabia que morava sozinho, e, claro, talvez sentisse falta do aconchego de um ambiente familiar.

Deliciar-se com uma comida boa, melhor do que a melhor que podia ser encontrada nos restaurantes não era ocasião para se perder.

Com dois convidados a menos do que o esperado almoçamos naquele domingo, segundo meu colega, a melhor bisteca que ele havia comido na vida.

O amigo de meu colega também gostou muito do almoço. Fiquei impressionado com uma coincidência: ele era delegado de polícia na mesma cidade em que meu amigo trabalhara como juiz de direito antes de ser transferido para a Capital! Entretanto, achei melhor não fazer nenhum comentário sobre o amigo que faltara ao almoço naquele dia.

Ele contou-nos também que estava afastado de suas funções para tratamento de saúde.

E a semana passou.

No domingo seguinte eu e o meu amigo, o juiz, conversávamos enquanto aguardávamos o almoço.

Foi então que me lembrei de contar-lhe a coincidência do último domingo.    

Ele quase se engasgou com a cerveja ao ouvir o nome do delegado que esteve assentado naquela mesma cadeira. Arregalou os olhos e explicou:

- Ainda bem que não vim almoçar com você! Aquele delegado está aqui respondendo a um inquérito! Mandei afastar o safado porque ele fazia parte de uma quadrilha que roubava cargas na Rio-Bahia

 

 

 

Morar em Veneza é diferente de visitá-la

 

Daquela vez ele não estava visitando a cidade. Estava a trabalho, incumbido de dar palestras na Universidade de Veneza.

Há duas semanas se encontrava hospedado na casa de um amigo, italiano, professor daquela universidade, e já adquirira o “espírito” de morador local, pois fazia pequenas caminhadas na vizinhança e até comprava alguns itens para o café da manhã.         

Não se sentia muito à vontade, era verdade. A casa do amigo ficava um pouco distante dos locais tradicionalmente visitados pelos turistas.  Era uma zona tipicamente residencial... E veneziana.  Casas seculares, açoitadas pelo vento do Adriático, testemunharam o vai e vem de muitas gerações por aquelas ruelas.  O vêneto, falado pela população local, era diferente do italiano formal a ponto de embaraçá-lo. 

A ausência inesperada de seu anfitrião, que viajara à vizinha Áustria, obrigara-o a ficar sozinho naquela casa que parecia desafiar o tempo de tão antiga. 

Ele era modesto, mas sabia o seu valor na comunidade científica. Era reconhecido internacionalmente. Sua memória para fatos e argumentações era impressionantemente rápida e precisa. Nas palestras, sempre respondia ou rebatia argumentações capciosas com elegância e sem vacilações.

Entretanto, inconfessável era sua pouca capacidade de orientação, e, por que não dizer, a facilidade com que se perdia num local com traçado moderno, com quarteirões e cruzamentos perfeitamente definidos.

O que dizer de ruelas estreitas, sinuosas e com bifurcações que levavam ora a um paredão coberto de mofo, ora a uma pracinha sem saída com um chafariz centenário?

A arquitetura medieval e a sinuosidade das vielas o desnorteavam. Por isso nunca saía daquele trecho, restrito, equivalente à área de um quarteirão moderno. Ali ele encontrava tudo de que precisava: cafés, supermercado, restaurantes e até duas padarias.

Naquele dia de outono ele criara coragem. A umidade que vinha da lagoa-rua próxima e o céu cinzento criaram uma atmosfera que lhe causava tristeza e depressão. Estava disposto a sair do confinamento, a explorar outros “territórios”: iria caminhar além daquele trecho sombrio.

Despreocupadamente ele desce a pequena ladeira e entra numa viela até então desconhecida.

Observa atentamente a arquitetura dos tempos dos doges e caminha, caminha... Lê placas em vêneto e em italiano. Algumas têm ambas as versões. E caminha...

Fica cansado e resolve voltar para casa.

No primeiro cruzamento com outra viela fica em dúvida: Não sabe em qual delas andara para chegar até àquele ponto.

- Deve ser esta – diz baixinho. E entra na viela.

Não se dá conta de que quase todas as casas são parecidas. E aquela, sem dúvida, é a que procura: na que está morando há duas semanas.

Ele coloca a velha chave na fechadura e esta se abre facilmente. Dá alguns passos e faz gesto de fechar a porta atrás de si.

Felizmente o gesto não se completa, pois não reconhece o mobiliário e um tapete desgastado... Ele se dá conta de que está em outra casa. Sua chave abriu aquela porta por acaso!

No mesmo instante um enorme cão rottweiler surge no fim do corredor e parte em sua direção. Ele mal tem tempo de dar meia volta e fechar a porta atrás de si. O cão bate violentamente do outro lado da porta, late e rosna raivosamente; ele escapa por pouco.

Finalmente chega exausto à verdadeira casa em que está hospedado, já bem mais tarde, usando pacientemente o princípio básico do algoritmo simplex: “testando todas as possibilidades, até que uma delas seja satisfeita”, isto é, passando por várias ruelas até encontrar o verdadeiro “caminho de casa”.




 A VISITA DO SUPERIOR
João Bosco Miquelão




No saguão, para matar o tempo enquanto aguarda a chegada do prior, Frei Calisto tenta traduzir para o latim alguns cartazes e letreiros do aeroporto, pois é preciso praticar a língua que é o principal instrumento de comunicação em Roma há muitos séculos.

Não é difícil dar-se conta de que uma frase como "seu cartão de crédito pode render milhagem" é intraduzível.

Certamente Frei Calisto estará a caminho da Cidade Eterna dentro de pouco tempo. Tudo dependerá do viajante, de sotaque carregado, cujo voo está para chegar.

---ooo---

De volta do aeroporto o tráfego está lento, quase parando. Homem de meia idade e caladão, o prior prefere observar a falar. De soslaio Frei Calisto vê que seu superior, a seu lado, observa tudo e faz anotações.

Sente calafrios quando percebe que seu passageiro contempla um outdoor onde uma mulher seminua e uma drag queen anunciam um show erótico. Frei Calisto, para disfarçar seu enorme embaraço, tenta dizer alguma coisa, balbucia algumas palavras ininteligíveis, tosse e cala-se. 

---ooo---

Anoitece. O prior é um homem prático e esperto. Conseguira cumprir sua extensa agenda de trabalho e livrar-se da companhia tutelar de seus pares.

Em trajes comuns, lá está ele diante da casa de espetáculos! Um cartaz, ainda maior do que o outdoor que vira durante o anda e para de sua chegada, exibe, na fachada, a mulher seminua e a drag queen.

"Este noite prromete", ele diz baixinho.

O espetáculo valera a pena! Suas mãos chegam a ficar ligeiramente inchadas, pois aplaudira frenética e calorosamente. Levanta-se para ir embora, mas uma ideia maluca lhe passa pela cabeça: cumprimentar a drag queen em seu camarim! 

Esgueirando-se por entre os que saem do teatro dirige-se aos fundos do prédio e sobe as escadas que levam às dependências de serviço. Bate à porta do camarim. Uma voz responde:

- Pode entrar.

Ele entra. A drag queen, que está de costas, sem a peruca e parte da maquiagem, vira-se. O prior arregala os olhos e exclama espantado:

- Frrei Calistô!



DEVANEIO

João Bosco Miquelão
  

O virtual
O virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual. Contrariamente ao possível, estático e já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização" (Pierre Levy, 1996).

O lugar
Não só é necessário duvidar sobre o que é o lugar, mas também se ele existe (Aristóteles, Física, L. IV, p. 209).

O outro
“ [...] o corpo do outro lhe é tão próximo como o seu. Teria podido amá-lo da mesma forma que a ele mesmo antes que ele fosse outro e que lhe seja tão próximo como o seu [...]” (Lacan, 1962).




Solilóquio eletrônico

Esta crônica é uma alegoria da manifestação do outro - uma realidade enigmática - no interior do eu como o inconsciente, seja fora, como o outro sedutor e traumatizante que se apresenta no processo de constituição da subjetividade num ambiente virtual.

Prezado eu

Escrevo-lhe esta mensagem como o experimento de um novo paradigma - alguém conversando com o outro.

Escrevendo esta mensagem daqui e você recebendo-a daí é uma ação dúplice que, antes de ser reflexiva, no sentido gramatical, ela o é no sentido mais amplo da palavra, carecendo de uma profunda reflexão.

Na verdade não sei se quem fala (ou quem ouve) sou eu ou você, mas não se pode esquecer que, como diz o filósofo, a virtualização é um dos principais vetores de criação da realidade.

As pessoas não vão entender este diálogo... Ou é um monólogo?  

Pensarão em recomendar um psiquiatra! Dirão que se trata de um leve distúrbio mental - um caso de dupla personalidade - com a agravante de envolver uma figura virtual!

Nós vivemos (ou seria eu vivo?!) momentos de confusão e, às vezes, até de crises. Se você - eu, vive / vivo crise existencial, deprimido, eu - você vivo / vive crise virtual, comprimido...

Você, ainda tem ruas com gente, a presença física de toda a família, pessoas para conversar, coisas para fazer, dedos para contar até dez!

Eu, preso nessa rede imensa, sendo repartido em bits, ora pra lá, ora pra cá, num mundo sem fronteiras em que domina a velocidade. Tudo é muito rápido, dura somente nanos - até o modo de contar, que começa de zero e só vai até um!

Aqui tudo é muito pequeno – micro, mini... ou muito grande... giga, tera... E também preciso e certo... menos a criptografia, que é incerta e assimétrica.
Não existe distância física entre as pessoas, pois o tempo não é ordinário e tudo é resolvido em binário. 

A virtualização, ainda como diz o filósofo, transforma a atualidade inicial em um caso particular de uma problemática mais geral, sobre a qual passa a ser colocada a ênfase ontológica.

Ando confuso, precisando de ajuda.

Socorro! Inventem rápido o [psico]analista de sistema!

Beijos nas crianças.

Eu.
Fui....


O HOMEM QUE ASSINAVA UM NOME QUE NÃO TINHA

João Bosco Miquelão



Corria o ano de 1930 quando ele saiu interior de Minas Gerais para trabalhar numa mina próxima a Belo Horizonte. 

A fama dos patrões, ingleses, era boa; diziam que os estrangeiros pagavam em dia, e, assim, ele resolveu tomar um rumo diferente de seus outros dois irmãos José e Augusto: saiu de Rio Casca para trabalhar em Raposos.  

Ele viajou sem nenhum documento. As exigências burocráticas eram mínimas naquela época. Como era forte, disposto, falante e de bons modos, não houve quaisquer problemas para sua admissão. Ele preencheu uma ficha com o nome e endereço, do próprio punho, uma aptidão pouco comum a um trabalhador braçal naquela época, e logo começou a trabalhar.

A sua pontualidade, esforço e boa vontade logo chamaram atenção dos seus superiores. Depois de pouco mais de um ano já não “pegava no pesado” – fora promovido a ascensorista do enorme elevador que transportava cargas e trabalhadores no poço principal da mina, serviço que executava com maestria, o que muito agradava os administradores da mina. Ganhara até um apelido carinhoso: “Antônio Vermelho”.

Em 1932 o governo instituiu a carteira de trabalho. Para emissão do novo documento era necessário apresentar a certidão de nascimento, e a companhia concedeu a ele uma licença de alguns dias para conseguir uma cópia da tal certidão. Ele viajou à cidade de Visconde do Rio Branco, sua cidade natal.

Mas voltou triste e decepcionado: o cartório de registro civil não encontrara nenhum assentamento com o seu nome.

Como o gerente da mina gostava dele e admirava sua dedicação ao trabalho, resolveu conceder-lhe outra oportunidade – ele ganhou nova licença e também foi aconselhado a insistir com o funcionário do cartório e até oferecer a este uma recompensa financeira caso ele tivesse que fazer uma busca mais apurada fora do horário de expediente.

Mediante os dados de que dispunha – data de nascimento, seu prenome Antônio, nome dos pais e até o nome do padrinho, ele conseguiu a tão desejada certidão de nascimento.

Para sua surpresa, entretanto, também descobriu que foi o seu padrinho que o registrara, mantendo sua data de nascimento e os verdadeiros nomes dos pais, mas alterando seu sobrenome.

Naquele dia Antônio Vermelho ficou sabendo que seu verdadeiro nome não era Antônio Miquelão, e sim Antônio dos Santos.

 

 REPRESENTAÇÃO DA VIDA NUMA RETA 

João Bosco Miquelão



Matematizando o tempo em que vivo num intervalo numérico, representando nossas vidas por uma reta, vejo que estou num dos extremos.

Antes de qualquer coisa, aqui cabe uma explicação: intervalo numérico é um conjunto que contém um número real entre dois extremos escolhidos, e, provavelmente, os próprios extremos.

Olho para trás e vejo alguns pontos distintos nessa reta. São pessoas que me acompanham nesse caminho...

Estivesse eu no dia em que Deus criou o homem do pó da terra, teria pedido licença e dito:

- O Senhor não precisa nem deve gostar de palpites. Entretanto, permita-me um palpitezinho: esse boneco, que o Senhor vai soprar nas narinas e dar vida só vai dar valor à sua existência quando já estiver no fim de sua jornada aqui na Terra. A melhor solução é não deixá-lo completar 80 anos, pois após essa idade o homem vira um “bagaço”. Mas, Senhor, não  é para matar o homem aos 79 anos. Pelo contrário... A partir dos 79 anos a contagem passa a ser regressiva, ou seja, 78, 77, 76, 75...

Vantagens que teríamos com essa contagem do tempo da vida:

1 – as mulheres não esconderiam mais a idade – pelo contrário: acrescentariam uns anos ao seu tempo de vida para mostrar que no futuro próximo ficariam novas novamente;

2 – em 2018, caso ainda eu esteja vivo, voltaria a ter a idade que tenho hoje;

3 – dentro de 27 anos, em 2044, eu estaria na idade que minha filha tem hoje – 50 anos;

4 – no ano seguinte, em 2045, ela estaria com minha atual idade – 78 anos;

5 – em 2073 ela novamente estaria com 50 anos;

6 – e eu, renovadinho, aos 21 estaria entrando na segunda maioridade... E com 136 anos de experiência de vida!

Muito bacana!

Nota: Esta crônica foi escrita em 2017.



 O HOMEM TALENTOSO

João Bosco Miquelão



Não existe uma definição de inteligência completa. Segundo alguns especialistas, a inteligência seria algo que permite ao homem compreender o mundo em que vive, tomar decisões sobre o que melhor fazer, planejar e resolver problemas, aprender com a experiência e utilizar conceitos abstratos.
Por outro lado, o talento, relacionado à inteligência, é algo nato e resultante de esforço, tão precioso que talvez até seu nome esteja associado a uma moeda antiga usada pelos gregos e romanos – o talentum.
Embora vizinhos há muitos anos, somente há algum tempo nos aproximamos do casal: um feito para o outro - ela, uma bibliófila inveterada, devoradora de livros. Ele, um dos homens mais talentosos que já conheci; lê muito, possui uma enorme quantidade de livros e assina revistas de vários gêneros.
 Ele é músico, toca vários instrumentos, entende de eletrônica e também é marceneiro, especialista em produzir miniaturas decorativas de alta qualidade.
 Como aposentado de um antigo órgão do governo que cuidava de radiodifusão, o meu amigo - assim posso chamá-lo agora - também passou a interessar-se por radioamadorismo.
Ao lado da oficina que mantém nos fundos da casa, a sua estação de rádio é de causar inveja: nada menos do que três transmissores, todos montados por ele próprio!
Dá gosto vê-lo conversando com radioamadores de outros países, ora em inglês, ora em francês, frequentemente em espanhol, italiano e em alemão. Já o vi ensaiando até algumas palavras em japonês.
 Fui algumas vezes à casa dele, e sempre voltei impressionado com as habilidades do amigo, pois ele sempre me reservava uma surpresa. Mentalmente comecei até a me referir a ele como “o talentoso”.
A última surpresa, entretanto, aconteceu em plena rua.
Eu fazia minha caminhada matinal quando vi o talentoso amigo parado numa esquina, absorto, como se estivesse prestando muita atenção em algo que eu não conseguia perceber.
Ao me ver, ele fez sinal com a palma da mão, o que eu entendi como um alerta para não interrompê-lo.
Ele continuou quieto por mais alguns segundos e aí veio a explicação que me deixou perplexo:
- Você está ouvindo esses cachorros? Eles estão latindo no mesmo ritmo!
Fiquei impressionado com aquela nova habilidade do meu amigo que eu acabava de descobrir: perceber que cachorros estavam latindo num ritmo comum!
Mas, afinal, essa descoberta teria algum significado ou finalidade? Consultei um amigo veterinário. Ele riu e apenas comentou:
- Não pode ser. Isto não existe!
Outro conhecido, místico, ofereceu uma explicação que não me convenceu:
- Deve ser uma mensagem do além Ele consegue captá-las através dos cachorros!
Muitos dias se passaram. Fiquei algum tempo sem ter notícias do meu amigo até o dia em que alguém me chamou à porta de minha casa.
Era a filha daquele homem fino e talentoso, que veio dar uma notícia:
- Meu pai começou a ouvir cachorros latindo no mesmo ritmo, adquiriu o hábito de ficar trancado no quarto, e, de repente, passou a falar palavrões e a quebrar os móveis lá de casa. Ele está internado. 


 MANOEL-BICICLETA
         João Bosco Miquelão



O termo bullying ainda não havia chegado a estas bandas, e incomodar psicologicamente uma pessoa não era considerado um ato politicamente incorreto.
Ele era conhecido como Manoel-Bicicleta e fez parte de meus tempos de criança de uma forma que não me deixa saudades, pois muitas vezes me constrangeu a ponto de provocar lágrimas de raiva e de vergonha. Com sua barba por fazer e voz grave, era portador de disartria – fala arrastada. O homem não podia me ver, estivesse eu sozinho ou em companhia de colegas - meu torturador não tinha complacência e iniciava sua costumeira zombaria:
            - Mas a mamãe mandou buscar é couve!
Quantas vezes perdi a coragem de me reunir com amigos, não participei das “peladas” de futebol e até tive que alterar o caminho rumo à igreja pelo fato de ter visto antes o nosso vizinho torturador. Manoel-Bicicleta parecia estar sempre à minha espreita e pronto para repetir a mesma frase, em voz alta, chamando a atenção de todos:
- Mas a mamãe mandou buscar é couve!
Minha reação era sempre a do animal diante do caçador: fugia ou me escondia antes que ele me visse.
Tudo começou quando eu ainda era bem novo, talvez com três ou quatro anos. Minha mãe comprava verduras da esposa de Manoel e, não podendo ir ela mesma buscar a encomenda naquele dia, couve fresca, incumbiu-me de fazê-lo.
Ao contrário de Manoel-Bibicleta, sua esposa era meiga e tinha um grande carinho por mim, talvez por eu ser franzino, miúdo, aparentando ser bem mais novinho.
Ela me explicou que não havia mais couve, mas eu poderia levar outro tipo de verdura, dentre as muitas de sua horta. Não concordei, pois, afinal, estava ali para cumprir uma ordem expressa de minha mãe, que era autoritária e severa:
- Mas a mamãe mandou buscar é couve!
Muito paciente, ela novamente me explicou que a couve havia acabado, mas havia outras opções: almeirão, alface, taioba...
Bati o pé e insisti:
- Mas a mamãe mandou buscar é couve!
 Seu marido, que ouvia toda a conversa, não perdeu a oportunidade. Riu muito e, com sua voz arrastada, começou a repetir:
- Mas a mamãe mandou buscar é couve! Mas a mamãe mandou buscar é couve...
Hoje sei que o deboche é um comportamento passivo-agressivo, dissimulado, pois, num tom de brincadeira, deixa a vítima confusa, insinuando uma gozação inocente.
 Por minha falta de sorte, outra oportunidade de gozação surgiria algum tempo depois.
 Não sei a época precisamente, mas acho que estávamos no final da década de 1940, tempos em que os juízes de paz eram eleitos por voto direto, universal e secreto, juntamente com vereadores e prefeitos.
Um dos candidatos a prefeito era o pároco local. Naquela época o ocupante de tal cargo eclesiástico era chamado de vigário. Era um padre politiqueiro, e diziam que andava até armado. Ele era amigo de nossa família e convidou meu pai para ser candidato a juiz de paz.
O padre instalou um alto-falante em uma das janelas da casa paroquial, e desse palanque ele enviava mensagens às pessoas que frequentavam a pracinha. Pedia votos para ele e seus companheiros de chapa, fazia oposição à administração local e muitas promessas para melhorar a situação dos moradores mais pobres.
Certo dia eu dei azar de estar nas proximidades da casa paroquial e o padre-candidato me viu da janela quando fazia seus pronunciamentos políticos. Ele fez sinal para que eu entrasse. Obedeci.
Ele me entregou o microfone, tapou-o com uma mão e cochichou:
- Seu pai é candidato a juiz de paz. Peça votos para ele.
Talvez temendo castigo do céu, pois, afinal, quem me fazia um pedido era um sacerdote, deixei a timidez de lado, tomei o microfone e, para minha desgraça, anunciei:
- Meu pai é candidato a juiz de paz! Votem nele!
Jamais podia imaginar que Manoel-Bicicleta, que estava nas imediações, acabava de ganhar mais munição para me tirar o sossego com suas gozações, pois, a partir desse dia era comum eu ouvir, como um eco satânico, aquela voz arrastada:
- Meu pai é candidato a juiz de paz! Votem nele!
Para piorar, meu pai perdeu a eleição!

Contato com este blogjbmiquelao@uol.com.br.