sexta-feira, 18 de junho de 2021

 

O imitador mentiroso

João Bosco Miquelão

Junho de 1980. Geraldo, conhecido como “Mentirinha”, era um torneiro-mecânico dos bons, mas o que fazia mesmo com perfeição tinha a finalidade de distrair os amigos: ele era um excelente imitador, tinha uma mímica impecável e excelentes recursos de voz.

“Mentirinha” gostava de contar casos, sempre com pinceladas exageradas dos fatos, quando não inventava detalhes. Na verdade, fazia jus ao apelido, pois era também um exímio mentiroso.

Fazendo caretas engraçadas, suas imitações de Pato Donald, Popeye, Cid Moreira, do Presidente Figueiredo e de muitos outros personagens atraíam os fregueses dos botecos que frequentava.

Apesar de não ter um tórax avantajado, Geraldo tinha uma voz poderosa. Se fosse cantor lírico seria classificado como barítono grave.

Além de imitador, “Mentirinha” também gostava de pregar peças ao telefone. Alguns amigos chegaram a sofrer com suas brincadeiras cruéis e maquiavélicas.

Talvez seja lenda: dizem que ele foi audacioso a ponto de criar embaraços para algumas autoridades em duas ocasiões no governo militar, quando imitou o Governador Francelino Pereira, de Minas Gerais, e o General Newton Cruz – este último era conhecido como dono de uma voz firme e autoritária.

Depois de pregar suas peças, o imitador gostava de rir das vítimas, contando suas façanhas à roda de amigos e admiradores.

Era domingo. Uma vizinha do mentiroso estava saindo para ir à missa das dez horas quando teve que voltar para atender ao telefone.

Ela ficou pálida, começou a tremer, não conseguiu conter a emoção e foi à missa com cara de choro.

Na hora da homilia estava tranquila e feliz com a boa notícia que daria naquele momento.

O padre termina a pregação e vira-se para retornar ao altar. Ela fica de pé, levanta a mão e diz em voz bem alta:

- Quero dar uma boa notícia ao povo desta paróquia!

A mulher nem espera o consentimento do padre. Caminha em direção ao sacerdote, sobe um degrau do presbítero, vira-se de costas para o altar e anuncia:

- Hoje, ao sair de casa para vir à igreja, recebi um telefonema do Santo Padre. O Papa João Paulo II me informou que, na vinda à nossa cidade, em julho, pretende visitar uma família de nosso bairro, e a minha casa foi escolhida! Como estou feliz, minha gente!

O padre fica atônito, franze as sobrancelhas e não sabe o que dizer.

A comoção é geral. Murmurinho, risos e até palmas são ouvidas.

Diante da repercussão causada pelo acontecimento, Geraldo “Mentirinha”, por precaução, achou melhor não divulgar, imediatamente, mais uma de suas maldades.

Entretanto, essa cautela durou pouco. O rapaz era vaidoso, e como um guerreiro vitorioso que gosta de falar de suas batalhas, ele acabou relatando o fato a alguns amigos, repetindo com fidelidade as palavras com que convenceu a pobre senhora de que era o Papa.

Também pudera!  Aquele sotaque polonês convenceria até o bispo!

E a notícia de que fora vítima de uma brincadeira de mau gosto chegou aos ouvidos da velhinha.

Indignada com o papel ridículo que fizera, ela não teve dúvidas: procurou a polícia e registrou uma queixa contra Geraldo.

Cumprindo as formalidades de praxe, o delegado intimou ambas as partes para comparecimento à delegacia.

A vítima chega acompanhada de um advogado.  Geraldo comparece sozinho.   

O delegado lê em voz alta a queixa e pergunta se Geraldo confirma aquilo tudo.

O torneiro-mecânico abaixa a cabeça e diz humildemente:

- Sim, senhor!

O delegado passa-lhe uma descompostura, compara-o a um moleque desclassificado e ameaça prendê-lo. Como ele teve coragem de fazer tal maldade com uma pessoa idosa e tão indefesa?

Geraldo pigarreia, e com voz grave diz:

- Peço sinceras desculpas a esta senhora. Que ela me perdoe!

E, num gesto patético, levanta-se, toma ambas as mãos da mulher e as beija.

A mulher se comove e acena afirmativamente com a cabeça: Geraldo está perdoado!

O delegado se mostra satisfeito com o desfecho do caso e diz:

- Quero saber o que você disse a ela no telefonema.

“Mentirinha” não se faz de rogado. Levanta-se, pigarreia, assume um ar solene, cruza os braços diante da barriga e com voz empostada demonstra sua qualidade de excelente imitador: repete tudo num português carregado, repleto de erres - como se o próprio Papa estivesse falando diante deles.

O delegado fica impressionando com aquela imitação, não se contém e acha graça. Todos começam a rir, até o próprio advogado da vítima.

Como se arrependendo do perdão concedido há pouco, a mulher levanta-se furiosa e deixa a delegacia xingando:

- Safados! Vocês são todos uns sem-vergonha!

--- Do livro Plinia trunciflora e outras crônicas (MIQUELÃO, João Bosco. Niterói: Alternativa, 2016 – ISBN 978-85-63749-57-4).

segunda-feira, 7 de junho de 2021

COISAS QUE O TEMPO NÃO APAGA

 

   O PROPAGANDISTA

 

 

João Bosco Miquelão

 

 

 

 

Corria o ano de 1960, e ele orgulhava-se de seu trabalho. Nessa época, trabalhar como propagandista de laboratório farmacêutico multinacional conferia muito prestígio à pessoa que exercia tal atividade.  

                 Ele ganhava relativamente bem e gostava do que fazia. Exercia suas atividades com zelo e dedicação junto a farmácias, consultórios médicos, hospitais, clínicas e laboratórios.

                 As pessoas que trabalhavam nas farmácias eram amigas, e os médicos lhe dispensavam um excelente atendimento - não havia espera: a recepcionista o anunciava e, imediatamente, entre a saída de um paciente e a entrada de outro estava ele colocando em prática o que exercitara em casa e havia aperfeiçoado com o supervisor: a apresentação de um novo produto com todos os seus termos técnicos e fórmulas químicas! Tudo muito bem decorado - até os gestos, - meticulosamente estudados.

                 O doutor, na maioria das vezes, prestava muita atenção no falatório ou fingia fazê-lo. Valia a pena, pois, além da "literatura", que, na maioria das vezes, ia diretamente para o cesto de lixo, havia pequenos brindes, e, quase sempre, essas visitas também rendiam uma grande quantidade de amostras grátis.

Estava noivo, mas nem por isso havia desistido de comprar o carro. Se os negócio se mantivessem nos mesmosveis dos meses anteriores, as comissões não  haveriam de cair, e ele ainda poderia contar com uma gratificação!.

A gerência regional estava empenhada em cobrir as metas estabelecidas pela matriz. Isso significava pontos para a filial e dinheiro extra no bolso de todos.

Recebendo o dinheiro extra, pensava ele, poderia pagar a prestação dos móveis novos e reservar uma boa quantia para realizar aquele grande sonho de consumo: a entrada no pagamento de um fusca zero, do ano 1960!

Era importante fazer muito esforço para a cota ser atingida, inclusive visitar aquela farmácia tão distante.

 A tarde chegava ao fim. Depois de visitar a farmácia longínqua e realizar boas vendas, descobriu que uma quantia bem menor, para pagar a passagem de ônibus, resolveria seu problema mais imediato - estava sem dinheiro para voltar ao centro da cidade! Esquecera-se de que saíra de casa com pouco dinheiro e de que também gastara com o almoço, cafezinhos e cigarros.

Pedir emprestado ao dono da farmácia seria inimaginável. A ideia de voltar a também não o animava, pois o percurso era longo, a tarde estava quente, usava paletó e gravata, e a noite não tardaria; bem vestido e carregando uma linda pasta, seria um alvo fácil para ladrões.

 

- “Sou um sujeito de sorte, meu problema está resolvido”, disse baixinho, ao avistar um ex-colega de colégio no ponto final do ônibus.

Ele caminhou em direção ao rapaz. Este, pouco cerimonioso, cumprimentou-o e foi logo dizendo:

 - “Ótimo encontrar você aqui: estou sem dinheiro e quero que pague a minha passagem!".

 

              ---- Esta crônica representa uma homenagem a um amigo que já se foi. Meu professor do jogo de  xadrez,  com quem mantive excelente convivência durante mais de meio século. Ficaram dele boas lembranças, inclusive o episódio acima que ele me relatou.

Contato: jbmiquelao@gmail.com.


sábado, 5 de junho de 2021

CRÔNICA DE HOJE

 

Uma figura inesquecível: a mulher de máscara e do chicote

 

              João Boco Miquelão




 

Era um senhor respeitável, morava sozinho e não tinha hábitos estranhos.

Bem cedo, diariamente, fazia uma longa caminhada a pretexto de comprar pães. Como um dos primeiros fregueses do dia, o velho quase sempre aguardava o momento em que a padaria iniciava o expediente.

Homem fino, culto, gostava de recitar trechos de clássicos latinos. Se alguma coisa o fazia rir, invariavelmente, apelava para uma expressão atribda a Horácio: risum teneatis? - que, prazerosamente, traduzia: "Há como não achar graça?".

 

Ele tinha seus segredos. Um deles relacionava-se à sua formação acadêmica, uma questão que deixava aberta à especulação alheia, pois, quando este era o assunto na roda de amigos, ficava calado ou desconversava. Por causa da desenvoltura com que tratava os temas jurídicos, afirmava-se que ele teria sido um advogado competente, o que o velho nunca confirmava nem negava. Achava graça... e vinha o latinório invariável: risum teneatis?

 

Dizia ter noventa e cinco anos. Um exagero, quando se levava em conta seu bom estado físico e a facilidade com que se lembrava de fatos, nomes e datas sem vacilar. A admiração pela sua memória privilegiada proporcionava-lhe um enorme prazer. No clube de xadrez, frequentado nos fins de semana, tornara-se legendária a facilidade com que se lembrava e conseguia reproduzir partidas inteiras jogadas meses!  

 

 - O senhor é engenheiro aposentado? - arriscava alguém. Como de costume, ele não respondia, ria e soltava a indefectível frase.

 

A história de sua família era um dos seus segredos mais bem guardados. Jamais falava sobre ela.  

Não tinha formação acadêmica. Era um excelente autodidata que sabia usar uma memória prodigiosa e disciplinada, Conseguira decorar quase três mil livros, abrangendo os mais variados assuntos do conhecimento humano!

Naquele   domingo,   jogando   xadrez, ele estivera irreconhecível. Não conseguira sequer empatar uma partida. Por mais que se esforçara, não pudera lembrar-se dos lances que houvera preparado nem dos que acabara de jogar.

Desanimado, foi para casa. O andar lépido desaparecera. Seu caminhar parecia mesmo o de um ancião quase centenário. 

Desta vez, não chegou assobiando. Abriu uma gaveta e retirou um retrato - na verdade, era uma página arrancada de uma revista que mostrava uma linda jovem, morena, seminua, usando máscara e segurando urn chicote. Apaixonara-se, perdidamente, por aquela mulher!

 Um fato extraordinário aconteceria na padaria, bem cedo, naquela manhã de segunda-feira. Como fazia anos, o respeitável idoso apareceria para comprar pães... E completamente nu!

 

                       Piedade à parte, risum teneatis – houve até quem achou graça! ...


Contato: jbmiquelao@gmail.com.