segunda-feira, 7 de junho de 2021

COISAS QUE O TEMPO NÃO APAGA

 

   O PROPAGANDISTA

 

 

João Bosco Miquelão

 

 

 

 

Corria o ano de 1960, e ele orgulhava-se de seu trabalho. Nessa época, trabalhar como propagandista de laboratório farmacêutico multinacional conferia muito prestígio à pessoa que exercia tal atividade.  

                 Ele ganhava relativamente bem e gostava do que fazia. Exercia suas atividades com zelo e dedicação junto a farmácias, consultórios médicos, hospitais, clínicas e laboratórios.

                 As pessoas que trabalhavam nas farmácias eram amigas, e os médicos lhe dispensavam um excelente atendimento - não havia espera: a recepcionista o anunciava e, imediatamente, entre a saída de um paciente e a entrada de outro estava ele colocando em prática o que exercitara em casa e havia aperfeiçoado com o supervisor: a apresentação de um novo produto com todos os seus termos técnicos e fórmulas químicas! Tudo muito bem decorado - até os gestos, - meticulosamente estudados.

                 O doutor, na maioria das vezes, prestava muita atenção no falatório ou fingia fazê-lo. Valia a pena, pois, além da "literatura", que, na maioria das vezes, ia diretamente para o cesto de lixo, havia pequenos brindes, e, quase sempre, essas visitas também rendiam uma grande quantidade de amostras grátis.

Estava noivo, mas nem por isso havia desistido de comprar o carro. Se os negócio se mantivessem nos mesmosveis dos meses anteriores, as comissões não  haveriam de cair, e ele ainda poderia contar com uma gratificação!.

A gerência regional estava empenhada em cobrir as metas estabelecidas pela matriz. Isso significava pontos para a filial e dinheiro extra no bolso de todos.

Recebendo o dinheiro extra, pensava ele, poderia pagar a prestação dos móveis novos e reservar uma boa quantia para realizar aquele grande sonho de consumo: a entrada no pagamento de um fusca zero, do ano 1960!

Era importante fazer muito esforço para a cota ser atingida, inclusive visitar aquela farmácia tão distante.

 A tarde chegava ao fim. Depois de visitar a farmácia longínqua e realizar boas vendas, descobriu que uma quantia bem menor, para pagar a passagem de ônibus, resolveria seu problema mais imediato - estava sem dinheiro para voltar ao centro da cidade! Esquecera-se de que saíra de casa com pouco dinheiro e de que também gastara com o almoço, cafezinhos e cigarros.

Pedir emprestado ao dono da farmácia seria inimaginável. A ideia de voltar a também não o animava, pois o percurso era longo, a tarde estava quente, usava paletó e gravata, e a noite não tardaria; bem vestido e carregando uma linda pasta, seria um alvo fácil para ladrões.

 

- “Sou um sujeito de sorte, meu problema está resolvido”, disse baixinho, ao avistar um ex-colega de colégio no ponto final do ônibus.

Ele caminhou em direção ao rapaz. Este, pouco cerimonioso, cumprimentou-o e foi logo dizendo:

 - “Ótimo encontrar você aqui: estou sem dinheiro e quero que pague a minha passagem!".

 

              ---- Esta crônica representa uma homenagem a um amigo que já se foi. Meu professor do jogo de  xadrez,  com quem mantive excelente convivência durante mais de meio século. Ficaram dele boas lembranças, inclusive o episódio acima que ele me relatou.

Contato: jbmiquelao@gmail.com.


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