sábado, 5 de junho de 2021

CRÔNICA DE HOJE

 

Uma figura inesquecível: a mulher de máscara e do chicote

 

              João Boco Miquelão




 

Era um senhor respeitável, morava sozinho e não tinha hábitos estranhos.

Bem cedo, diariamente, fazia uma longa caminhada a pretexto de comprar pães. Como um dos primeiros fregueses do dia, o velho quase sempre aguardava o momento em que a padaria iniciava o expediente.

Homem fino, culto, gostava de recitar trechos de clássicos latinos. Se alguma coisa o fazia rir, invariavelmente, apelava para uma expressão atribda a Horácio: risum teneatis? - que, prazerosamente, traduzia: "Há como não achar graça?".

 

Ele tinha seus segredos. Um deles relacionava-se à sua formação acadêmica, uma questão que deixava aberta à especulação alheia, pois, quando este era o assunto na roda de amigos, ficava calado ou desconversava. Por causa da desenvoltura com que tratava os temas jurídicos, afirmava-se que ele teria sido um advogado competente, o que o velho nunca confirmava nem negava. Achava graça... e vinha o latinório invariável: risum teneatis?

 

Dizia ter noventa e cinco anos. Um exagero, quando se levava em conta seu bom estado físico e a facilidade com que se lembrava de fatos, nomes e datas sem vacilar. A admiração pela sua memória privilegiada proporcionava-lhe um enorme prazer. No clube de xadrez, frequentado nos fins de semana, tornara-se legendária a facilidade com que se lembrava e conseguia reproduzir partidas inteiras jogadas meses!  

 

 - O senhor é engenheiro aposentado? - arriscava alguém. Como de costume, ele não respondia, ria e soltava a indefectível frase.

 

A história de sua família era um dos seus segredos mais bem guardados. Jamais falava sobre ela.  

Não tinha formação acadêmica. Era um excelente autodidata que sabia usar uma memória prodigiosa e disciplinada, Conseguira decorar quase três mil livros, abrangendo os mais variados assuntos do conhecimento humano!

Naquele   domingo,   jogando   xadrez, ele estivera irreconhecível. Não conseguira sequer empatar uma partida. Por mais que se esforçara, não pudera lembrar-se dos lances que houvera preparado nem dos que acabara de jogar.

Desanimado, foi para casa. O andar lépido desaparecera. Seu caminhar parecia mesmo o de um ancião quase centenário. 

Desta vez, não chegou assobiando. Abriu uma gaveta e retirou um retrato - na verdade, era uma página arrancada de uma revista que mostrava uma linda jovem, morena, seminua, usando máscara e segurando urn chicote. Apaixonara-se, perdidamente, por aquela mulher!

 Um fato extraordinário aconteceria na padaria, bem cedo, naquela manhã de segunda-feira. Como fazia anos, o respeitável idoso apareceria para comprar pães... E completamente nu!

 

                       Piedade à parte, risum teneatis – houve até quem achou graça! ...


Contato: jbmiquelao@gmail.com.

 

 

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