Desencontro por um triz
Ele
havia sido transferido para a Capital recentemente. Conhecia poucas pessoas
nesta cidade e fizera amizade comigo através de um parente.
Além
de contar casos dos tempos de juventude, tínhamos em comum outro gosto:
automóveis grandes. Ele admirava meu Dodge Charger RT, carrão bem conservado, com
motor de oito cilindros, que pouco saía da garagem. Falou em comprá-lo, mas
nunca chegou a fazer uma proposta para esse fim.
Costumava
visitar-me aos sábados quando trazia a esposa e os dois filhos. Nessas ocasiões
tomávamos cerveja e a conversava se estendia até tarde. Às vezes a família
vinha almoçar num domingo, e nunca faltavam às festinhas de aniversário.
Ocasionalmente
nos reuníamos na casa do tal parente que nos apresentou.
Nessas
conversas abordávamos o estudo dos filhos, a situação econômica do país,
questões históricas - temas de que ambos gostávamos - e outros assuntos
diversos, mas nada sobre nossas atividades profissionais.
Ele
era juiz de direito, eu trabalhava no departamento financeiro de uma grande empresa
– assim era óbvio que o trabalho de um nada tinha a ver com o do outro.
Uma
vez combinamos um almoço na minha casa. Lembro-me que o prato principal seria
bisteca ao forno, uma delícia que minha mulher preparava com um capricho
especial.
Naquele
domingo levantei-me mais cedo, abasteci a geladeira de cervejas e
refrigerantes. Também providenciei frutas e demais complementos para o almoço.
Eram
cerca de dez horas quando o telefone tocou. Era o meu amigo que se desculpava
por não poder comparecer ao almoço. Havia surgido um imprevisto, e ele, por
conta própria, já se convidava para outro almoço no domingo seguinte.
Minha
mulher ficou um pouco aborrecida, pois desde o dia anterior ela se ocupara com os
preparativos do tal almoço...
O
relógio ainda não marcava onze horas quando o telefone tocou novamente. Era um
colega da empresa em que eu trabalhava. Ele indagava se podia almoçar na minha
casa e ainda perguntou se podia levar um amigo.
Esse
colega era solteirão. Eu tinha pena dele. Sabia que morava sozinho, e, claro, talvez
sentisse falta do aconchego de um ambiente familiar.
Deliciar-se
com uma comida boa, melhor do que a melhor que podia ser encontrada nos restaurantes
não era ocasião para se perder.
Com
dois convidados a menos do que o esperado almoçamos naquele domingo, segundo
meu colega, a melhor bisteca que ele havia comido na vida.
O
amigo de meu colega também gostou muito do almoço. Fiquei impressionado com uma
coincidência: ele era delegado de polícia na mesma cidade em que meu amigo
trabalhara como juiz de direito antes de ser transferido para a Capital!
Entretanto, achei melhor não fazer nenhum comentário sobre o amigo que faltara
ao almoço naquele dia.
Ele
contou-nos também que estava afastado de suas funções para tratamento de saúde.
E
a semana passou.
No
domingo seguinte eu e o meu amigo, o juiz, conversávamos enquanto aguardávamos
o almoço.
Foi
então que me lembrei de contar-lhe a coincidência do último domingo.
Ele
quase se engasgou com a cerveja ao ouvir o nome do delegado que esteve
assentado naquela mesma cadeira. Arregalou os olhos e explicou:
-
Ainda bem que não vim almoçar com você! Aquele delegado está aqui respondendo a
um inquérito! Mandei afastar o safado porque ele fazia parte de uma quadrilha
que roubava cargas na Rio-Bahia
Morar em Veneza é diferente de visitá-la
Daquela vez ele não estava visitando a
cidade. Estava a trabalho, incumbido de dar palestras na Universidade de
Veneza.
Há duas semanas se encontrava hospedado na
casa de um amigo, italiano, professor daquela universidade, e já adquirira o
“espírito” de morador local, pois fazia pequenas caminhadas na vizinhança e até
comprava alguns itens para o café da manhã.
Não se sentia muito à vontade, era verdade.
A casa do amigo ficava um pouco distante dos locais tradicionalmente visitados
pelos turistas. Era uma zona tipicamente
residencial... E veneziana. Casas
seculares, açoitadas pelo vento do Adriático, testemunharam o vai e vem de
muitas gerações por aquelas ruelas. O
vêneto, falado pela população local, era diferente do italiano formal a ponto
de embaraçá-lo.
A ausência inesperada de seu anfitrião, que
viajara à vizinha Áustria, obrigara-o a ficar sozinho naquela casa que parecia
desafiar o tempo de tão antiga.
Ele era modesto, mas sabia o seu valor na
comunidade científica. Era reconhecido internacionalmente. Sua memória para
fatos e argumentações era impressionantemente rápida e precisa. Nas palestras,
sempre respondia ou rebatia argumentações capciosas com elegância e sem
vacilações.
Entretanto, inconfessável era sua pouca
capacidade de orientação, e, por que não dizer, a facilidade com que se perdia
num local com traçado moderno, com quarteirões e cruzamentos perfeitamente
definidos.
O que dizer de ruelas estreitas, sinuosas e
com bifurcações que levavam ora a um paredão coberto de mofo, ora a uma
pracinha sem saída com um chafariz centenário?
A arquitetura medieval e a sinuosidade das
vielas o desnorteavam. Por isso nunca saía daquele trecho, restrito,
equivalente à área de um quarteirão moderno. Ali ele encontrava tudo de que
precisava: cafés, supermercado, restaurantes e até duas padarias.
Naquele dia de outono ele criara coragem. A
umidade que vinha da lagoa-rua próxima e o céu cinzento criaram uma atmosfera
que lhe causava tristeza e depressão. Estava disposto a sair do confinamento, a
explorar outros “territórios”: iria caminhar além daquele trecho sombrio.
Despreocupadamente ele desce a pequena
ladeira e entra numa viela até então desconhecida.
Observa atentamente a arquitetura dos tempos
dos doges e caminha, caminha... Lê placas em vêneto e em italiano. Algumas têm
ambas as versões. E caminha...
Fica cansado e resolve voltar para casa.
No primeiro cruzamento com outra viela fica
em dúvida: Não sabe em qual delas andara para chegar até àquele ponto.
- Deve ser esta – diz baixinho. E entra na
viela.
Não se dá conta de que quase todas as casas
são parecidas. E aquela, sem dúvida, é a que procura: na que está morando há
duas semanas.
Ele coloca a velha chave na fechadura e esta
se abre facilmente. Dá alguns passos e faz gesto de fechar a porta atrás de si.
Felizmente o gesto não se completa, pois não
reconhece o mobiliário e um tapete desgastado... Ele se dá conta de que está em
outra casa. Sua chave abriu aquela porta por acaso!
No mesmo instante um enorme cão rottweiler surge no fim do corredor e
parte em sua direção. Ele mal tem tempo de dar meia volta e fechar a porta
atrás de si. O cão bate violentamente do outro lado da porta, late e rosna
raivosamente; ele escapa por pouco.
Finalmente chega exausto à verdadeira casa
em que está hospedado, já bem mais tarde, usando pacientemente o princípio
básico do algoritmo simplex: “testando todas as possibilidades, até que uma
delas seja satisfeita”, isto é, passando por várias ruelas até encontrar o
verdadeiro “caminho de casa”.
A VISITA DO SUPERIOR
João
Bosco Miquelão
No saguão, para matar o tempo enquanto
aguarda a chegada do prior, Frei Calisto tenta traduzir para o latim alguns
cartazes e letreiros do aeroporto, pois é preciso praticar a língua que é o
principal instrumento de comunicação em Roma há muitos séculos.
Não é difícil dar-se conta de que uma frase
como "seu cartão de crédito pode render milhagem" é intraduzível.
Certamente Frei Calisto estará a caminho da Cidade
Eterna dentro de pouco tempo. Tudo dependerá do viajante, de sotaque carregado,
cujo voo está para chegar.
---ooo---
De volta do aeroporto o tráfego está lento,
quase parando. Homem de meia idade e caladão, o prior prefere observar a falar.
De soslaio Frei Calisto vê que seu superior, a seu lado, observa tudo e faz
anotações.
Sente calafrios quando percebe que seu
passageiro contempla um outdoor onde
uma mulher seminua e uma drag queen
anunciam um show erótico. Frei
Calisto, para disfarçar seu enorme embaraço, tenta dizer alguma coisa, balbucia
algumas palavras ininteligíveis, tosse e cala-se.
---ooo---
Anoitece. O prior é um homem prático e
esperto. Conseguira cumprir sua extensa agenda de trabalho e livrar-se da
companhia tutelar de seus pares.
Em trajes comuns, lá está ele diante da casa
de espetáculos! Um cartaz, ainda maior do
que o outdoor que vira durante o anda
e para de sua chegada, exibe, na fachada, a mulher seminua e a drag queen.
"Este
noite prromete", ele diz baixinho.
O espetáculo valera a pena! Suas mãos chegam
a ficar ligeiramente inchadas, pois aplaudira frenética e calorosamente. Levanta-se
para ir embora, mas uma ideia maluca lhe passa pela cabeça: cumprimentar a drag queen em seu camarim!
Esgueirando-se por entre os que saem do teatro
dirige-se aos fundos do prédio e sobe as escadas que levam às dependências de
serviço. Bate à porta do camarim. Uma voz responde:
- Pode entrar.
Ele entra. A drag queen, que está de costas, sem a peruca e parte da maquiagem,
vira-se. O prior arregala os olhos e exclama espantado:
- Frrei
Calistô!
DEVANEIO
João Bosco
Miquelão
O virtual
“O virtual não se opõe
ao real, mas sim ao atual. Contrariamente ao possível, estático e já
constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de
forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade
qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização" (Pierre
Levy, 1996).
O lugar
“Não
só é necessário duvidar sobre o que é o lugar, mas também se ele existe” (Aristóteles, Física, L. IV, p. 209).
O outro
“ [...] o corpo do outro lhe é tão próximo como
o seu. Teria podido amá-lo da mesma forma que a ele mesmo antes que ele fosse
outro e que lhe seja tão próximo como o seu [...]” (Lacan, 1962).
Esta
crônica é uma alegoria da manifestação do outro - uma realidade enigmática - no
interior do eu como o inconsciente, seja fora, como o outro sedutor e
traumatizante que se apresenta no processo de constituição da subjetividade num
ambiente virtual.
Prezado eu
Escrevo-lhe esta mensagem
como o experimento de um novo paradigma - alguém conversando com o outro.
Escrevendo esta mensagem
daqui e você recebendo-a daí é uma ação dúplice que, antes de ser reflexiva, no
sentido gramatical, ela o é no sentido mais amplo da palavra, carecendo de uma
profunda reflexão.
Na verdade não sei se quem
fala (ou quem ouve) sou eu ou você, mas não se pode esquecer que, como diz o
filósofo, a virtualização é um dos principais vetores de criação da realidade.
As pessoas não vão entender
este diálogo... Ou é um monólogo?
Pensarão em recomendar um psiquiatra!
Dirão que se trata de um leve distúrbio mental - um caso de dupla personalidade
- com a agravante de envolver uma figura virtual!
Nós vivemos (ou seria eu
vivo?!) momentos de confusão e, às vezes, até de crises. Se você - eu, vive /
vivo crise existencial, deprimido, eu - você vivo / vive crise virtual, comprimido...
Você, ainda tem ruas com
gente, a presença física de toda a família, pessoas para conversar, coisas para
fazer, dedos para contar até dez!
Eu, preso nessa rede imensa,
sendo repartido em bits, ora pra lá,
ora pra cá, num mundo sem fronteiras em que domina a velocidade. Tudo é muito rápido,
dura somente nanos - até o modo de contar, que começa de zero e só vai até um!
Aqui tudo é muito pequeno –
micro, mini... ou muito grande... giga, tera... E também preciso e certo...
menos a criptografia, que é incerta e assimétrica.
Não existe distância física
entre as pessoas, pois o tempo não é ordinário e tudo é resolvido em binário.
A virtualização, ainda como
diz o filósofo, transforma a atualidade inicial em um caso particular de uma
problemática mais geral, sobre a qual passa a ser colocada a ênfase ontológica.
Ando confuso, precisando de
ajuda.
Socorro! Inventem rápido o [psico]analista
de sistema!
Beijos nas crianças.
Eu.
Fui....
O
HOMEM QUE ASSINAVA UM NOME QUE NÃO TINHA
João Bosco Miquelão
Corria o
ano de 1930 quando ele saiu interior de Minas Gerais para trabalhar numa mina próxima a Belo Horizonte.
A
fama dos patrões, ingleses, era boa; diziam que os estrangeiros pagavam em dia,
e, assim, ele resolveu tomar um rumo diferente de seus outros dois irmãos José
e Augusto: saiu de Rio Casca para trabalhar em Raposos.
Ele
viajou sem nenhum documento. As exigências burocráticas eram mínimas naquela
época. Como era forte, disposto, falante e de bons modos, não houve quaisquer
problemas para sua admissão. Ele preencheu uma ficha com o nome e endereço, do
próprio punho, uma aptidão pouco comum a um trabalhador braçal naquela época, e
logo começou a trabalhar.
A
sua pontualidade, esforço e boa vontade logo chamaram atenção dos seus
superiores. Depois de pouco mais de um ano já não “pegava no pesado” – fora
promovido a ascensorista do enorme elevador que transportava cargas e
trabalhadores no poço principal da mina, serviço que executava com maestria, o
que muito agradava os administradores da mina. Ganhara até um apelido
carinhoso: “Antônio Vermelho”.
Em
1932 o governo instituiu a carteira de trabalho. Para emissão do novo documento
era necessário apresentar a certidão de nascimento, e a companhia concedeu a
ele uma licença de alguns dias para conseguir uma cópia da tal certidão. Ele
viajou à cidade de Visconde do Rio Branco, sua cidade natal.
Mas
voltou triste e decepcionado: o cartório de registro civil não encontrara nenhum
assentamento com o seu nome.
Como
o gerente da mina gostava dele e admirava sua dedicação ao trabalho, resolveu
conceder-lhe outra oportunidade – ele ganhou nova licença e também foi aconselhado
a insistir com o funcionário do cartório e até oferecer a este uma recompensa
financeira caso ele tivesse que fazer uma busca mais apurada fora do horário de
expediente.
Mediante
os dados de que dispunha – data de nascimento, seu prenome Antônio, nome dos
pais e até o nome do padrinho, ele conseguiu a tão desejada certidão de
nascimento.
Para
sua surpresa, entretanto, também descobriu que foi o seu padrinho que o
registrara, mantendo sua data de nascimento e os verdadeiros nomes dos pais,
mas alterando seu sobrenome.
Naquele
dia Antônio Vermelho ficou sabendo que seu verdadeiro nome não era Antônio
Miquelão, e sim Antônio dos Santos.
REPRESENTAÇÃO DA VIDA
NUMA RETA
João Bosco Miquelão
Matematizando o tempo em que vivo num
intervalo numérico, representando nossas vidas por uma reta, vejo que estou num
dos extremos.
Antes de qualquer coisa, aqui cabe
uma explicação: intervalo numérico é um conjunto que contém um número real
entre dois extremos escolhidos, e, provavelmente, os próprios extremos.
Olho para trás e vejo alguns pontos
distintos nessa reta. São pessoas que me acompanham nesse caminho...
Estivesse eu no dia em que Deus criou
o homem do pó da terra, teria pedido licença e dito:
- O Senhor não precisa nem deve
gostar de palpites. Entretanto, permita-me um palpitezinho: esse boneco, que o
Senhor vai soprar nas narinas e dar vida só vai dar valor à sua existência
quando já estiver no fim de sua jornada aqui na Terra. A melhor solução é não
deixá-lo completar 80 anos, pois após essa idade o homem vira um “bagaço”. Mas,
Senhor, não é para matar o homem aos 79
anos. Pelo contrário... A partir dos 79 anos a contagem passa a ser regressiva,
ou seja, 78, 77, 76, 75...
Vantagens que teríamos com essa
contagem do tempo da vida:
1 – as mulheres não esconderiam mais
a idade – pelo contrário: acrescentariam uns anos ao seu tempo de vida para
mostrar que no futuro próximo ficariam novas novamente;
2 – em 2018, caso ainda eu esteja vivo,
voltaria a ter a idade que tenho hoje;
3 – dentro de 27 anos, em 2044, eu
estaria na idade que minha filha tem hoje – 50 anos;
4 – no ano seguinte, em 2045, ela
estaria com minha atual idade – 78 anos;
5 – em 2073 ela novamente estaria com
50 anos;
6 – e eu, renovadinho, aos 21 estaria entrando na segunda maioridade... E com
136 anos de experiência de vida!
Muito bacana!
Nota: Esta crônica foi escrita em 2017.
O
HOMEM TALENTOSO
Não existe uma definição de inteligência
completa. Segundo alguns especialistas, a inteligência seria algo que permite
ao homem compreender o mundo em que vive, tomar decisões sobre o que melhor
fazer, planejar e resolver problemas, aprender com a experiência e utilizar
conceitos abstratos.
Por outro lado, o talento, relacionado à
inteligência, é algo nato e resultante de esforço, tão precioso que talvez até
seu nome esteja associado a uma moeda antiga usada pelos gregos e romanos – o talentum.
Embora vizinhos há muitos anos, somente
há algum tempo nos aproximamos do casal: um feito para o outro - ela, uma
bibliófila inveterada, devoradora de livros. Ele, um dos homens mais talentosos
que já conheci; lê muito, possui uma enorme quantidade de livros e assina
revistas de vários gêneros.
Ele
é músico, toca vários instrumentos, entende de eletrônica e também é marceneiro,
especialista em produzir miniaturas decorativas de alta qualidade.
Como
aposentado de um antigo órgão do governo que cuidava de radiodifusão, o meu
amigo - assim posso chamá-lo agora - também passou a interessar-se por
radioamadorismo.
Ao lado da oficina que mantém nos fundos
da casa, a sua estação de rádio é de causar inveja: nada menos do que três
transmissores, todos montados por ele próprio!
Dá gosto vê-lo conversando com
radioamadores de outros países, ora em inglês, ora em francês, frequentemente
em espanhol, italiano e em alemão. Já o vi ensaiando até algumas palavras em
japonês.
Fui
algumas vezes à casa dele, e sempre voltei impressionado com as habilidades do
amigo, pois ele sempre me reservava uma surpresa. Mentalmente comecei até a me
referir a ele como “o talentoso”.
A última surpresa, entretanto, aconteceu
em plena rua.
Eu fazia minha caminhada matinal quando
vi o talentoso amigo parado numa esquina, absorto, como se estivesse prestando
muita atenção em algo que eu não conseguia perceber.
Ao me ver, ele fez sinal com a palma da
mão, o que eu entendi como um alerta para não interrompê-lo.
Ele continuou quieto por mais alguns
segundos e aí veio a explicação que me deixou perplexo:
- Você está ouvindo esses cachorros? Eles
estão latindo no mesmo ritmo!
Fiquei impressionado com aquela nova
habilidade do meu amigo que eu acabava de descobrir: perceber que cachorros
estavam latindo num ritmo comum!
Mas, afinal, essa descoberta teria algum
significado ou finalidade? Consultei um amigo veterinário. Ele riu e apenas
comentou:
- Não pode ser. Isto não existe!
Outro conhecido, místico, ofereceu uma
explicação que não me convenceu:
- Deve ser uma mensagem do além Ele
consegue captá-las através dos cachorros!
Muitos dias se passaram. Fiquei algum
tempo sem ter notícias do meu amigo até o dia em que alguém me chamou à porta
de minha casa.
Era a filha daquele homem fino e
talentoso, que veio dar uma notícia:
- Meu pai começou a ouvir cachorros
latindo no mesmo ritmo, adquiriu o hábito de ficar trancado no quarto, e, de
repente, passou a falar palavrões e a quebrar os móveis lá de casa. Ele está
internado.
João Bosco Miquelão
O termo bullying ainda não havia chegado a estas bandas, e incomodar
psicologicamente uma pessoa não era considerado um ato politicamente incorreto.
Ele
era conhecido como Manoel-Bicicleta e
fez parte de meus tempos de criança de uma forma que não me deixa saudades,
pois muitas vezes me constrangeu a ponto de provocar lágrimas de raiva e de vergonha.
Com sua barba por fazer e voz grave, era portador de disartria – fala
arrastada. O homem não podia me ver, estivesse eu sozinho ou em companhia de
colegas - meu torturador não tinha complacência e iniciava sua costumeira
zombaria:
- Mas a mamãe mandou buscar é
couve!
Quantas
vezes perdi a coragem de me reunir com amigos, não participei das “peladas” de
futebol e até tive que alterar o caminho rumo à igreja pelo fato de ter visto
antes o nosso vizinho torturador. Manoel-Bicicleta
parecia estar sempre à minha espreita e pronto para repetir a mesma frase, em
voz alta, chamando a atenção de todos:
-
Mas a mamãe mandou buscar é couve!
Minha
reação era sempre a do animal diante do caçador: fugia ou me escondia antes que
ele me visse.
Tudo
começou quando eu ainda era bem novo, talvez com três ou quatro anos. Minha mãe
comprava verduras da esposa de Manoel e, não podendo ir ela mesma buscar a encomenda
naquele dia, couve fresca, incumbiu-me de fazê-lo.
Ao
contrário de Manoel-Bibicleta, sua
esposa era meiga e tinha um grande carinho por mim, talvez por eu ser franzino,
miúdo, aparentando ser bem mais novinho.
Ela
me explicou que não havia mais couve, mas eu poderia levar outro tipo de
verdura, dentre as muitas de sua horta. Não concordei, pois, afinal, estava ali
para cumprir uma ordem expressa de minha mãe, que era autoritária e severa:
-
Mas a mamãe mandou buscar é couve!
Muito
paciente, ela novamente me explicou que a couve havia acabado, mas havia outras
opções: almeirão, alface, taioba...
Bati
o pé e insisti:
-
Mas a mamãe mandou buscar é couve!
Seu marido, que ouvia toda a conversa, não
perdeu a oportunidade. Riu muito e, com sua voz arrastada, começou a repetir:
-
Mas a mamãe mandou buscar é couve! Mas a mamãe mandou buscar é couve...
Hoje
sei que o deboche é um comportamento passivo-agressivo, dissimulado, pois, num
tom de brincadeira, deixa a vítima confusa, insinuando uma gozação inocente.
Por minha falta de sorte, outra oportunidade
de gozação surgiria algum tempo depois.
Não sei a época precisamente, mas acho que
estávamos no final da década de 1940, tempos em que os juízes de paz eram
eleitos por voto direto, universal e secreto, juntamente com vereadores e
prefeitos.
Um
dos candidatos a prefeito era o pároco local. Naquela época o ocupante de tal
cargo eclesiástico era chamado de vigário. Era um padre politiqueiro, e diziam
que andava até armado. Ele era amigo de nossa família e convidou meu pai para
ser candidato a juiz de paz.
O
padre instalou um alto-falante em uma das janelas da casa paroquial, e desse
palanque ele enviava mensagens às pessoas que frequentavam a pracinha. Pedia
votos para ele e seus companheiros de chapa, fazia oposição à administração
local e muitas promessas para melhorar a situação dos moradores mais pobres.
Certo
dia eu dei azar de estar nas proximidades da casa paroquial e o padre-candidato
me viu da janela quando fazia seus pronunciamentos políticos. Ele fez sinal
para que eu entrasse. Obedeci.
Ele
me entregou o microfone, tapou-o com uma mão e cochichou:
-
Seu pai é candidato a juiz de paz. Peça votos para ele.
Talvez
temendo castigo do céu, pois, afinal, quem me fazia um pedido era um sacerdote,
deixei a timidez de lado, tomei o microfone e, para minha desgraça, anunciei:
-
Meu pai é candidato a juiz de paz! Votem nele!
Jamais
podia imaginar que Manoel-Bicicleta,
que estava nas imediações, acabava de ganhar mais munição para me tirar o
sossego com suas gozações, pois, a partir desse dia era comum eu ouvir, como um
eco satânico, aquela voz arrastada:
-
Meu pai é candidato a juiz de paz! Votem nele!
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